O QUE É LITERATURA?
R= O que é literatura? A perspectiva conceitual de literatura com que
lidaremos para o desenvolvimento do Projeto de Extensão “CAFÉ LITERÁRIO –
A narrativa literária como fonte de conhecimento” tem no pensador
francês Roland Barthes (1915-1980) o grande fundamento. Ele afirma, em
primeiro lugar, que não considera a literatura como comumente se admite:
o corpus de um conjunto de obras, nem um ramo comercial cuja mercadoria
são livros de gêneros específicos, e, muito menos, o ensino de uma
determinada disciplina. Para o viés barthesiano, esse termo tem uma
peculiaridade mais profunda, trata-se do “grafo complexo das pegadas de
uma prática: a prática de escrever” (BARTHES, 2007, p. 16). Tal grafo
complexo, ele chamará de texto, que nada mais é que o “tecido dos
significantes que constitui a obra” (BARTHES, 2007, p. 16). O foco que
Barthes dá ao texto advém do fato de ele o tomar como o autêntico
manifestar da língua, tornando-se, portanto, o ambiente ideal para se
travar o combate contra o poder nela manifesto, para ardilosamente dele
desviar-se, “não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo
das palavras de que ela é o teatro” (BARTHES, 2007, p. 16). Com isso, o
semiólogo francês quer deixar patente que a possibilidade de escape ao
poder, presente na literatura, não depende da postura política do
escritor em sua vida civil, tampouco do sentido doutrinário que sua obra
possa ter, mas essencialmente do exercício de deslocamento que ele
efetua sobre a língua. Em outras palavras, a preocupação de Barthes
reside na forma de como o texto literário se organiza, se configura, na
busca por ludibriar a língua, constituindo-se, assim, num avesso do
poder, ou, o que também é verdadeiro, no desvelamento do poder desde o
seu avesso.
O deslocamento operado sobre a língua, mediante a configuração da forma
que se consuma no texto literário, revelam as forças da literatura,
entre a quais, Barthes destaca três: a Mathesis, a Mimesis e a Semiosis.
O termo grego mathesis tomado por empréstimo por Barthes, para
empregá-lo como uma das forças da literatura, tem um sentido similar ao
que o filósofo francês René Descartes (1596-1560) já utilizara no início
da filosofia moderna, que se traduz nos seguintes termos: “o bom método
é aquele que permite conhecer verdadeiramente o maior número de coisas
com o menor número de regras” (CHAUI, 1996, p. 77, grifo da autora). Em
razão disso, tal método deveria sempre ser considerado matemático, ou
seja, “tomado no sentido grego da expressão ta mathema, isto é,
conhecimento completo, perfeito e inteiramente dominado pela
inteligência” (CHAUI, 1996, 77).
Mutatis mutandis, é por um viés aproximado que Barthes afirma que “A
literatura assume muitos saberes” (BARTHES, 2007, p. 17). Tomando como
exemplo o romance Robinson Crusoé, do escritor inglês Daniel Defoe
(1660-1731), Barthes ressalta nessa obra a presença de saberes diversos,
como, o histórico, o geográfico, o social, o botânico, o antropológico.
Num tom visionário, enaltecendo a força da Mathesis literária, o
semiólogo francês declara que, se por alguma inexplicável razão, todas
as disciplinas tivessem que ser extintas do ensino, com a exceção de uma
só, esta deveria ser a literatura, “pois todas as ciências estão
presentes no monumento literário” (BARTHES, 2007, p. 17).
Marilena Chauí apresenta a expressão grega Mimesis, com os seguintes
significados: “Imitação, ação de imitar, representação, ação de
reproduzir, de figurar” (CHAUI, 2002, p. 506). É justamente como
representação que Barthes vai afirmar a segunda força resguardada pela
literatura. Para ele, desde seus primórdios até no que há de mais
inovador em suas formas de expressão na contemporaneidade, se há um
esforço permanente da literatura, esse é o de representar algo, é o de
valer por alguma coisa. E que “algo” é esse ou que “alguma coisa” é essa
que a literatura teima em querer representar? Barthes não titubeia em
responder de forma direta: o real! “O real não é representável, e é
porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há
uma história da literatura” (BARTHES, 2007, p. 21). É diante da
impossibilidade de representação do real que a literatura investe
insistentemente. Muito mais que isso: a vã luta empreendida por essa
arte da palavra no afã de apreender e figurar o real é que faz da
literatura o que ela é: a arte do impossível, “Que não haja paralelismo
entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é
essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz,
numa faina incessante, a literatura” (BARTHES, 2007, p. 22).
O movimento de teimar e deslocar-se realizado pela literatura
consubstancia-se, então, segundo Barthes, num ardiloso método para jogar
com os discursos do poder. Em outros termos, desde um artifício lúdico,
no que essa palavra de tem de mais profundo , a literatura brinca de
“esconde-esconde” com todo e qualquer tentame de aprisioná-la num
reducionismo, de enquadrá-la numa taxionomia, de domesticar a sua
irascibilidade, “Assim não devemos espantar-nos se, no horizonte
impossível da anarquia linguageira – ali onde a língua tenta escapar ao
seu próprio poder, à sua servidão –, encontramos algo que se relaciona
com o teatro” (BARTHES, 2007, p. 27).
Tal jogo empregado pela literatura nada mais é que a sua terceira força,
nomeada por Barthes como Semiosis, cujo funcionamento traduz-se em
“jogar com os signos em vez de destruí-los” (BARTHES, 2007, p. 27, grifo
do autor). Tal afirmação vem ao encontro do que já foi dito
anteriormente, a saber, a alternativa que a linguagem encontra para
escapar aos ditames dos discursos do poder não se efetiva fora da
língua, mas em seu próprio âmbito, ou seja, trapaceando com a língua
para trapacear a língua. Daí Barthes ter dado o nome para tal trapaça de
literatura, a arte de jogar com os signos que constituem determinada
língua. Jogar com os signos, nesse sentido, significa “colocá-los numa
maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança
arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil
uma verdadeira heteronímia das coisas”