quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O QUE É LITERATURA?



O QUE É LITERATURA?

R= O que é literatura? A perspectiva conceitual de literatura com que lidaremos para o desenvolvimento do Projeto de Extensão “CAFÉ LITERÁRIO – A narrativa literária como fonte de conhecimento” tem no pensador francês Roland Barthes (1915-1980) o grande fundamento. Ele afirma, em primeiro lugar, que não considera a literatura como comumente se admite: o corpus de um conjunto de obras, nem um ramo comercial cuja mercadoria são livros de gêneros específicos, e, muito menos, o ensino de uma determinada disciplina. Para o viés barthesiano, esse termo tem uma peculiaridade mais profunda, trata-se do “grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever” (BARTHES, 2007, p. 16). Tal grafo complexo, ele chamará de texto, que nada mais é que o “tecido dos significantes que constitui a obra” (BARTHES, 2007, p. 16). O foco que Barthes dá ao texto advém do fato de ele o tomar como o autêntico manifestar da língua, tornando-se, portanto, o ambiente ideal para se travar o combate contra o poder nela manifesto, para ardilosamente dele desviar-se, “não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro” (BARTHES, 2007, p. 16). Com isso, o semiólogo francês quer deixar patente que a possibilidade de escape ao poder, presente na literatura, não depende da postura política do escritor em sua vida civil, tampouco do sentido doutrinário que sua obra possa ter, mas essencialmente do exercício de deslocamento que ele efetua sobre a língua. Em outras palavras, a preocupação de Barthes reside na forma de como o texto literário se organiza, se configura, na busca por ludibriar a língua, constituindo-se, assim, num avesso do poder, ou, o que também é verdadeiro, no desvelamento do poder desde o seu avesso.
O deslocamento operado sobre a língua, mediante a configuração da forma que se consuma no texto literário, revelam as forças da literatura, entre a quais, Barthes destaca três: a Mathesis, a Mimesis e a Semiosis.
O termo grego mathesis tomado por empréstimo por Barthes, para empregá-lo como uma das forças da literatura, tem um sentido similar ao que o filósofo francês René Descartes (1596-1560) já utilizara no início da filosofia moderna, que se traduz nos seguintes termos: “o bom método é aquele que permite conhecer verdadeiramente o maior número de coisas com o menor número de regras” (CHAUI, 1996, p. 77, grifo da autora). Em razão disso, tal método deveria sempre ser considerado matemático, ou seja, “tomado no sentido grego da expressão ta mathema, isto é, conhecimento completo, perfeito e inteiramente dominado pela inteligência” (CHAUI, 1996, 77).
Mutatis mutandis, é por um viés aproximado que Barthes afirma que “A literatura assume muitos saberes” (BARTHES, 2007, p. 17). Tomando como exemplo o romance Robinson Crusoé, do escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731), Barthes ressalta nessa obra a presença de saberes diversos, como, o histórico, o geográfico, o social, o botânico, o antropológico. Num tom visionário, enaltecendo a força da Mathesis literária, o semiólogo francês declara que, se por alguma inexplicável razão, todas as disciplinas tivessem que ser extintas do ensino, com a exceção de uma só, esta deveria ser a literatura, “pois todas as ciências estão presentes no monumento literário” (BARTHES, 2007, p. 17).
Marilena Chauí apresenta a expressão grega Mimesis, com os seguintes significados: “Imitação, ação de imitar, representação, ação de reproduzir, de figurar” (CHAUI, 2002, p. 506). É justamente como representação que Barthes vai afirmar a segunda força resguardada pela literatura. Para ele, desde seus primórdios até no que há de mais inovador em suas formas de expressão na contemporaneidade, se há um esforço permanente da literatura, esse é o de representar algo, é o de valer por alguma coisa. E que “algo” é esse ou que “alguma coisa” é essa que a literatura teima em querer representar? Barthes não titubeia em responder de forma direta: o real! “O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura” (BARTHES, 2007, p. 21). É diante da impossibilidade de representação do real que a literatura investe insistentemente. Muito mais que isso: a vã luta empreendida por essa arte da palavra no afã de apreender e figurar o real é que faz da literatura o que ela é: a arte do impossível, “Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a literatura” (BARTHES, 2007, p. 22).
O movimento de teimar e deslocar-se realizado pela literatura consubstancia-se, então, segundo Barthes, num ardiloso método para jogar com os discursos do poder. Em outros termos, desde um artifício lúdico, no que essa palavra de tem de mais profundo , a literatura brinca de “esconde-esconde” com todo e qualquer tentame de aprisioná-la num reducionismo, de enquadrá-la numa taxionomia, de domesticar a sua irascibilidade, “Assim não devemos espantar-nos se, no horizonte impossível da anarquia linguageira – ali onde a língua tenta escapar ao seu próprio poder, à sua servidão –, encontramos algo que se relaciona com o teatro” (BARTHES, 2007, p. 27).
Tal jogo empregado pela literatura nada mais é que a sua terceira força, nomeada por Barthes como Semiosis, cujo funcionamento traduz-se em “jogar com os signos em vez de destruí-los” (BARTHES, 2007, p. 27, grifo do autor). Tal afirmação vem ao encontro do que já foi dito anteriormente, a saber, a alternativa que a linguagem encontra para escapar aos ditames dos discursos do poder não se efetiva fora da língua, mas em seu próprio âmbito, ou seja, trapaceando com a língua para trapacear a língua. Daí Barthes ter dado o nome para tal trapaça de literatura, a arte de jogar com os signos que constituem determinada língua. Jogar com os signos, nesse sentido, significa “colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas”






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